por Antonio Negri
Na sociedade pós-moderna a mulher se torna modelo para as formas de produção.
Se aprofundarmos a análise das transformações do trabalho na sociedade pós-moderna e na organização pós-fordista da indústria, salta aos olhos um elemento de novidade que, a meu ver, é ignorado ou calado com excessiva frequência. É um elemento, antes de mais nada, quantitativo: o número de mulheres "postas para trabalhar" está em crescente aumento. Mas esta observação é realmente interessante? Relativamente. Este fenômeno estatístico revela, de fato, um progresso da ocupação feminina dos postos de "trabalho masculino" que o fordismo já incentivara.
A força-trabalho das mulheres, mais fraca (no mercado) e menos qualificada do que a dos homens, uma vez afirmada a simplificação e a desqualificação taylorista das operações industriais, era preferível à dos homens. Nos períodos bélicos isto tornou-se necessário. Não por acaso, houve quem sustentasse que os métodos tayloristas de organização do trabalho simples foram concebidos, da primeira vez, para pôr as mulheres para trabalhar, substituindo desta forma seus homens, enviados ao massacre, durante a Primeira Guerra Mundial.
Ainda assim, o que me interessa frisar aqui é uma novidade qualitativa: não a "feminização" do "trabalho masculino", mas o "tornar-se mulher" do trabalho em geral; não o fato de que as mulheres estejam tomando o lugar dos homens nas velhas fábricas, mas que — na produção contemporânea e nas formas eminentes de sua organização — trabalhar conjuga-se antes no feminino do que no masculino. E que, portanto, os próprios homens, para produzir, têm de algum modo que se feminizar.
Para sustentar esta tese, tenho de retroceder um pouco e lembrar quais são as características fundamentais da organização pós-fordista do trabalho e da sociedade produtiva pós-moderna. Nessas organizações, a produção de riqueza depende cada vez mais da produção de conhecimentos, a produção de conhecimentos depende cada vez mais da produção de subjetividade, a produção de subjetividade cada vez mais da reprodução social de processos vitais ricos em relações intelectuais e valores afetivos.
Expressando-me em termos mais usuais: a produção pós-fordista tem, em seu centro, uma força-trabalho social imaterial (intelectual e afetiva) que produz essencialmente mercadorias-serviços, cujo valor agregado é constituído pela eficiência dos "reseaux" sociais comunicativos, linguísticos, afetivos e da força-invenção que estes introduzem, ininterruptamente, nos circuitos.
Mais simplesmente, a sociedade mais rica é a que consegue explorar mais vasta e intensamente aqueles processos de reprodução social da vida que tornam os homens mais inteligentes e mais capazes de se comunicar. A sociedade mais rica e produtiva é a que consegue pôr no trabalho o mais rico e produtivo intercâmbio social e a mais rica e produtiva geração de subjetividade. Mas, quem estaria no centro da reprodução social da vida, da produção de subjetividade portanto, senão as mulheres? Quem educa para os valores da vida relacional e afetiva, senão as mães? Quem organiza os serviços da vida social (especialmente os mais elementares, que agora se tornam a base da produtividade), senão as mulheres?
É precisamente esta a razão de as mulheres terem sido excluídas pelo regime salarial fordista: no capitalismo fordista, os serviços ainda eram considerados, antes que produção, consumo puro e simples — consumos da família que tinham de ser incluídos no salário do "homem-pater-família" produtivo. Na sociedade pós-fordista e pós-moderna tudo muda: o trabalho produtivo de serviços não só se torna imaterial, como se torna, cada vez mais, "mulher".
Se eu pensar, mesmo que de maneira autocrítica, na distinção da "economia clássica" (que também o marxismo fez sua) entre produção e reprodução (distinção que confina as mulheres na reprodução pura e simples) e na consequência que de imediato se tirava disso (que era a de excluir o trabalho feminino, isto é, o da gestão da família, da reprodução social da vida e da educação dos filhos, da capacidade de produzir valor econômico), parece-me que hoje aquela horrível mistificação pode ser superada, e que os meninos (os revolucionários também!) tenham de deplorar a sua cegueira analítica, enquanto a afirmação do "tornar-se mulher" do trabalho começa a se mostrar em seu pleno vigor.
Deleuze e Guattari já haviam dito isso, mas não com uma referência direta ao trabalho: tinham insistido no "tornar-se mulher" da vida no contemporâneo biopolítico. Nós insistimos no "tornar-se mulher" do trabalho: porque os investimentos afetivos da reprodução da comunidade tornam-se fonte de riqueza da sociedade; porque a mercadoria-serviço nada vale se não for sustentada por capacidades relacionais; porque a gestão do intercâmbio vital e a educação dos cérebros tornam-se os desafios centrais de toda a sociedade produtiva.
Consolemo-nos, companheiros meninos: por mais algum tempo ainda restará, para nós, algum lugar na nova sociedade que se está configurando. Mas não há dúvida de que, desde já, teremos de dar um pouco mais de atenção ao fato de que a "transgressividade" do trabalho entre o homem e a mulher torna-se (na comunidade linguística e afetiva que constitui a empresa-em-rede contemporânea e a sua imersão na comunicação social) cada vez mais genérica e irresistível. Comecemos a nos familiarizar com isso para evitarmos maiores encrencas!
E do ponto de vista das mulheres? Parece-me que neste ponto se assiste a uma paradoxal "heteronomia das finalidades". Explico-me. O feminismo havia exaltado a mulher como um gênero separado ou, de outro modo, como capaz de se equiparar aos homens; em torno destas finalidades havia desdobrado a sua revolução. Agora, à diferença das previsões, a feminilidade está se tornando o elemento decisivo naquele campo que era reservado ao homem: o trabalho produtivo. Longe de se separarem, as qualidades femininas do trabalho atingem todo o território produtivo; longe de alcançarem uma equiparação, as mulheres se tornam hegemônicas na biopolítica pós-moderna. E logo tomarão consciência disso.
Releio o que escrevi e me pergunto se até agora não contei um conto de fadas. É muito provável, ainda que as premissas teóricas sobre as características fundamentais do modo pós-fordista de produção na sociedade pós-moderna me pareçam corretas. Mas a passagem das condições materiais às políticas não é, por certo, um "continuum". É muito provável, então, que isto que eu disse até agora acabe realmente se revelando um conto de fadas... Mas, permitam-me a conclusão, um belo conto de fadas!
Antonio Negri é cientista social italiano, autor de "A Anomalia Selvagem" (Ed. 34), entre outros; ele escreve mensalmente na Folha, na seção "Autores".
sexta-feira, outubro 27, 2006
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário